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  • Foto do escritorFlávia Esper

Você abraça a sua dor?


Dia desses postei um desabafo no facebook, sobre uma questão pessoal que ainda me dói muito. Recebi muitas mensagens carinhosas, nos comentários e por inbox, algumas de gente que mal me conhecia. Também recebi mensagens carinhosas que acolhiam a dor, mas tentavam me fazer agir e mudar a visão. E recebi, também, mensagens mais duras, sobre sair do papel de vítima logo e agir de uma vez por todas. Todas as mensagens vieram de gente que tem carinho por mim, cada um tentando ajudar à sua maneira e sou muito grata por isso. Mesmo porque não achei que a postagem teria tanta repercussão. Sou grata, principalmente, porque pude me ver em todas as mensagens e a forma como cada um respondeu à minha expressão de dor, e mesmo de vitimismo, foram formas como eu mesma já me tratei.

Fato é que, cada vez mais, tenho questionado essa conversa de que é possível curar tudo, mudar o olhar sobre tudo e ficar bem apesar de qualquer coisa. Não que eu não acredite que seja possível. Acredito sim. Acredito, por exemplo, que a gente é capaz de se curar de qualquer doença ou ferida. Mas acredito, também, que, em certos aspectos, essa possibilidade é mais uma utopia, um ideal que nos alimenta para que sigamos em frente, e cheguemos cada vez mais perto dele e que nem sempre o alcançaremos totalmente. Seja por nossas crenças serem muitas e estarem bastante arraigadas, seja por não querermos realmente abrir mão delas ou mesmo por não acreditarmos o necessário. E, talvez, ser humano seja também isso.

Foram duas conversas no facebook e vários casos no consultório e mesmo experiências pessoais que têm me feito refletir muito sobre isso. Tenho sentido uma cultura do bem estar, da evolução espiritual, da potência, do "seja o que quiser, ganhe o que desejar em 7 passos" e da plenitude que me soam falsas. Falsas não por não ser possível chegar lá, mas porque boa parte das pessoas que vejo falando nisso não resolveram suas feridas internas, apenas as tamponaram com uma máscara de que tudo está bem.

Já me critiquei muito e já fui criticada também por, sendo eu terapeuta, esclarecida, inteligente, ter meus momentos de me sentir vítima, de depressão, de dor, de tristeza, raiva e desabafo. Não significa que eu não saiba ou não acredite que temos de nos responsabilizar pelo que nos acontece e transformar em algo que nos faça crescer. Não significa que eu não ache que podemos nos reconstruir, criar uma nova realidade. Significa, apenas, que também sou humana e também tenho meus momentos de fraqueza. Também tenho questões profundas e mal resolvidas, com as quais lido diariamente. Quer dizer que trabalho para ressignificar meus próprios traumas, mas que ainda convivo com vários deles e que, apesar de não me paralisarem como antes, ainda estão por aqui e, volta e meia, eu caio. Caio menos, me levanto mais rápido, acompanho o processo com um pouco mais de consciência e menos desespero, mas ainda caio. E tudo bem.

É preciso viver - sem julgamentos - todas as emoções, dar lugar e vazão a elas. Senão, a ausência delas poderá ser apenas ilusão, poderá ser apenas algo que não mostramos, escondemos sob o tapete. Nossas sombras também existem e merecem ter lugar. Dar espaço e voz às nossas dores, feridas e fraquezas, ao que ainda não conseguimos transmutar também é importante. É como o luto: quanto mais o negamos, mais ele cresce no lado escondido de nós e explode em outras formas, como nas doenças.

O ser humano pleno é aquele que se permite viver e sentir diferentes emoções, sem julgamentos. Não são as emoções que nos atrapalham, mas o nosso julgamento sobre elas. A culpa e a baixa autoestima são frutos do julgamento. O medo do ridículo e de se expressar são medos do julgamento. Quando nos permitimos experimentar integralmente uma emoção, podemos, depois, escolher não senti-la. Mas, se escolhemos não senti-la enquanto está em nós, por julgamento ou qualquer outro motivo, travamos a expressão de uma parte nossa que ainda precisa ser expressa. Para ressignificar é preciso, antes, ter deixado um sentido primeiro ser expresso.

Houve um tempo em que, diante de uma crise longa, decidi deixar de ser terapeuta, porque eu achava que, para ser terapeuta, eu precisaria ser a pessoa mais equilibrada e bem resolvida do mundo. Até que uma amiga, também terapeuta, disse que era um presente eu ter passado por tanto abismo, porque ter mergulhado na minha sombra me ajudaria a acolher e respeitar quando o outro mergulhasse na dele. Por vezes, para encontrar o melhor de nós, precisamos atravessar o pior. Não é à toa que todos os tesouros das histórias estão ocultos, guardados por mapas complicados ou dragões.

Eu achava que ser forte era nunca me fazer de vítima, acolher a dor do outro, sim, mas a minha não. A minha eu tratava com rispidez, com um "levanta que você já sabe que não é pra se fazer de vítima". Até que, há pouco tempo, uma terapeuta muito amorosa me lembrou de que era importante dar voz a essa parte minha também, que muito do que estava me prendendo eram as partes que eu tinha soterrado com meu julgamento e que não me permitia expressar por medo das críticas. Eu estava adoecendo por falta de expressão. Estava trancada.

Há dores que ficam na nossa criança interna e, enquanto não são plenamente acolhidas, enquanto não lhes damos voz para falar, sentir e expressar tudo que, na época, lhes foi negado demonstrar, ficam lá, puxando a barra da calça ou da saia, sem nos deixar sair tanto do lugar. E, em vez de fazermos força, arrastando o pé no caminho, enquanto cremos que temos de ser fortes e que, se já sabemos racionalmente como deve ser, isso deve ser suficiente para curar a criança ferida, só nos afastamos cada vez mais da integridade do ser. Negar uma parte nossa, lutar contra ela ou ignorá-la é a pior forma tentar de curá-la e integrá-la. Mais eficiente é parar de caminhar um pouco, pegar a criança que chora nos braços e deixar que fale tudo que precisa, que grite, esperneie, se faça de vítima ou do que sentir necessidade e chore, até que toda a dor possa sair e ela possa, finalmente, escutar outra história.

Por mais que seja fundamental tomarmos as rédeas da nossa vida, isso só acontece de maneira integral depois que já acolhemos cada parte nossa. E, por vezes, algumas dessas partes demoram a sarar. E há que se respeitar o tempo, sem julgar. O julgamento, na verdade, nos afasta bem mais da espiritualidade e da plenitude que fazer-se de vítima às vezes. O julgamento separa, não integra e não nos permite viver todas as experiências de que necessitamos para sermos realmente inteiros.

É claro que, como adultos, ao pegarmos nossa criança interior no colo e deixarmos que ela expresse toda a dor, precisamos também mostrar a ela, com amorosidade, que há outras formas de ser e de enxergar o mundo. Cabe à nossa parte adulta, caminhar carregando a criança no colo, com afeto e acolhimento e não arrastando-a enquanto nos pede atenção, pendurada à barra da calça. Fazer isso não significa estar paralisado, mas ter a coragem de olhar as próprias fraquezas e dores, e carregá-las no colo, cuidar delas, até que possam se transformar em leveza real. E tudo bem se precisarmos caminhar mais devagar, por ter a criança no colo.

Algumas dores, especialmente de traumas muito severos quando pequenos, podem afetar mesmo o desenvolvimento físico do cérebro. Nossas dores e a forma como experienciamos o mundo também fazem de nós quem somos hoje. Descartá-las é tirar os alicerces sobre os quais nos estruturamos e construímos. Reescrever a própria história é fundamental para um processo de libertação e individuação, mas deve ser feito aos poucos e com cautela. Com amorosidade.

Pode ser que algumas dores e carências nos acompanhem por toda a vida, não obstante todos os trabalhos internos que façamos. E tudo bem. Somos humanos e faz parte de ser humanos ter dores e carências, por mais que trabalhemos para tê-las cada vez menores. E, se algumas dores continuarem conosco por toda a vida, podemos ressignificá-las, carregando-as no colo e fazendo algo de bom do que aprendemos com elas. Mas nunca devemos deixar de dar a elas espaço quando necessitem. O que não expressamos fica no corpo, gera doenças, padrões, ressalvas com a vida.

Que possamos encontrar, cada vez mais, a justa medida entre dar espaço às nossas fragilidades e seguir caminhando com mais consciência delas e de nós mesmos.

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