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  • Flávia Esper

Eu preciso estar sempre bem?


Foram duas conversas no facebook e vários casos no consultório e mesmo experiências pessoais que me fizeram refletir sobre isto. Tenho sentido uma cultura do bem estar, da evolução espiritual, da potência, do "seja o que quiser, ganhe o que desejar em 7 passos" e da plenitude que me soam falsas. Falsas não por não ser possível chegar lá, mas porque boa parte das pessoas que vejo falando nisso não resolveram suas feridas internas, apenas as tamponaram com uma máscara de que tudo está bem. E porque essa aparente facilidade de poucos passos nem sempre respeita as questões mais profundas e o tempo de cada pessoa.

Tenho questionado, cada vez mais, essa conversa de que é possível (e necessário) curar tudo, mudar o olhar sobre tudo e ficar bem apesar de qualquer coisa. Não que eu não acredite que seja possível. Acredito, sim. Acredito, por exemplo, que a gente é capaz de se curar de qualquer doença ou ferida. Mas acredito, também, que, em certos aspectos, essa possibilidade é mais uma utopia, um ideal que nos alimenta para que sigamos em frente, e cheguemos cada vez mais perto dele e que nem sempre o alcançaremos totalmente. Seja por nossas crenças serem muitas e estarem bastante arraigadas, seja por não querermos realmente abrir mão delas ou mesmo por não acreditarmos o necessário. E, talvez, ser humano seja também isso.

É preciso viver - sem julgamentos - todas as emoções, dar lugar e vazão a elas. Aceitá-las como parte de nós, de fato e com amorosidade, antes de deixá-las partir. Ter pressa nesse processo só atrapalha. Tudo que sentimos tem lugar e precisa de espaço para se expressar. Depois que se expressa, aí sim, pode partir. Como um ator que precise dizer seu texto e emoção em cena, mas que, depois disso, pode deixar o palco. Senão, a aparente ausência de uma determinada emoção ou ferida pode ser apenas ilusão, pode ser apenas algo que não mostramos, escondemos sob o tapete, mas que está ali. Nossas sombras também existem e merecem ter lugar. São uma parte essencial nossa e, junto com ela, está boa parde da nossa força profunda e da nossa criatividade. Dar espaço e voz às nossas dores, feridas e fraquezas, ao que ainda não conseguimos transmutar também é importante. É como o luto: quanto mais o negamos, mais ele cresce no lado escondido de nós e explode em outras formas, como nas doenças.

O ser humano pleno é aquele que se permite viver e sentir diferentes emoções, sem julgamentos. Não são as emoções que nos atrapalham, mas o nosso julgamento sobre elas. A culpa e a baixa autoestima são frutos do julgamento. O medo do ridículo e de se expressar são medos do julgamento. Quando nos permitimos experimentar integralmente uma emoção, podemos, depois, escolher não senti-la. Mas, se escolhemos não senti-la enquanto está em nós, por julgamento ou qualquer outro motivo, travamos a expressão de uma parte nossa que ainda precisa ser expressa. E essa emoção vai se transformar em dor, doença, dificuldade ou vai explodir um dia, sem aviso prévio, causando grande estrago.

Há dores que ficam na nossa criança interna e, enquanto não são plenamente acolhidas, enquanto não lhes damos voz para falar, sentir e expressar tudo que, na época, lhes foi negado demonstrar, ficam lá, puxando a barra da calça ou da saia, sem nos deixar sair tanto do lugar. E, em vez de fazermos força, arrastando o pé no caminho, achando que temos de ser fortes e durões, só nos afastamos cada vez mais da integridade do ser. Negar uma parte nossa, lutar contra ela ou ignorá-la é a pior forma tentar de curá-la e integrá-la. Mais eficiente é parar de caminhar um pouco, pegar a criança que chora nos braços e deixar que fale tudo que precisa, que grite, esperneie, se faça de vítima ou do que sentir necessidade e chore, até que toda a dor possa sair e ela possa, finalmente, escutar outra história.

Por mais que seja fundamental tomarmos as rédeas da nossa vida, isso só acontece de maneira integral depois que já acolhemos cada parte nossa. E, por vezes, algumas dessas partes demoram a sarar. E há que se respeitar o tempo, sem julgar. Algumas não saram nunca. Existem feridas que nos são essenciais, mas, ao passo que vamos nos conhecendo, dando lugar e sentido a elas, fazendo algo de bom a partir delas, algo de bom para nós e para os outros, elas não nos doem mais da mesma forma.

Você pode não estar bem. Ninguém está bem, é super bem resolvido, evoluído, sábio, próspero, potente, equilibrado, consciente e maduro o tempo todo. Você pode chorar e até se fazer de vítima, dar voz a essa emoção. Se a emoção ainda está aí, ela precisa sair, precisa de espaço para se expressar. E tudo bem isso acontecer. Conforme você for se conhecendo melhor, tratando suas feridas, dando vazão às emoções que estão soterradas dentro de você, cada vez mais se tornará consciente e responsável. Dar lugar não significa entrar no papel de vítima e nunca sair dele. Precisamos trabalhar nossas questões, claro. Mas significa que, se você está em um momento em que ainda se sente assim às vezes, tudo bem se sentir assim ainda.

Sabe o que fazer quando isso acontecer? Observe. Simplesmente observe, sem se julgar. "Olha... Aconteceu isso e estou me sentindo vítima de novo." Parece pouco, mas só observar já é meio caminho para a transformação. Primeiro porque nos libera do julgamento, apenas observamos, estamos de acordo com ainda precisarmos cair ou sofrer. Sabemos que faz parte do processo e que evolução não significa não cair nunca, mas cair e se levantar cada vez mais rápido e com menos dor. Segundo porque nos traz de volta ao centro, à consciência sobre nossas reações e esses são os primeiros passos para mudarmos. O julgamento, na verdade, nos afasta bem mais da espiritualidade e da plenitude que fazer-se de vítima às vezes. O julgamento separa, não integra e não nos permite viver todas as experiências de que necessitamos para sermos realmente inteiros.

É claro que, como adultos, ao pegarmos nossa criança interior no colo e deixarmos que ela expresse toda a dor, precisamos também mostrar a ela, com amorosidade, que há outras formas de ser e de enxergar o mundo. Cabe à nossa parte adulta, caminhar carregando a criança no colo, com afeto e acolhimento e não arrastando-a enquanto nos pede atenção, pendurada à barra da calça. Fazer isso não significa estar paralisado, mas ter a coragem de olhar as próprias fraquezas e dores, e carregá-las no colo, cuidar delas, andar mais devagar, se for o caso, até que possam se transformar em leveza real. Respeite suas dores e feridas. Respeite seu tempo e seus deslizes. Eles fazem parte da beleza de ir melhorando a cada dia.

Algumas dores, especialmente de traumas muito severos quando pequenos, podem afetar mesmo o desenvolvimento físico do cérebro. Nossas dores e a forma como experienciamos o mundo também fazem de nós quem somos hoje. Descartá-las é tirar os alicerces sobre os quais nos estruturamos e construímos. Reescrever a própria história é fundamental para um processo de libertação e individuação, mas deve ser feito aos poucos e com cautela. Com amorosidade.

Pode ser que algumas dores e carências nos acompanhem por toda a vida, não obstante todos os trabalhos internos que façamos. E tudo bem. Somos humanos e faz parte de ser humanos ter dores e carências, por mais que trabalhemos para tê-las cada vez menores. E, se algumas dores continuarem conosco por toda a vida, podemos ressignificá-las, carregando-as no colo e fazendo algo de bom do que aprendemos com elas. Mas nunca devemos deixar de dar a elas espaço quando necessitem. O que não expressamos fica no corpo, gera doenças, padrões, ressalvas com a vida.

Que possamos encontrar, cada vez mais, a justa medida entre dar espaço às nossas fragilidades e seguir caminhando com mais consciência delas e de nós mesmos.

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