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  • Foto do escritorFlávia Esper

"Winter is coming": precisamos falar sobre o inverno


Os antigos diziam que o inverno é o tempo do caos. É o momento em que a natureza morre para renascer deslumbrante na primavera. Era quando o frio e a falta de oferta de alimentos faziam com que as pessoas se voltassem para dentro das casas e das roupas, abrindo as despensas do que haviam colhido e preparado durante o período solar.

Mas o que seria o caos?

Chamamos de caos tudo aquilo em que ainda não conseguimos ver organização. Chamamos de caos as peças quebradas de algo que julgávamos estável e eterno, porque ainda não sabemos o que surgirá dali. Ou porque não percebemos com clareza qual a função dessa quebra no contexto da nossa vida e do universo. Caos é o momento em que temos todas as possibilidades, todo o material e os recursos, mas ainda não enxergamos claramente nossa intenção.

Quando falo disso, lembro-me daqueles livros 3d da década de 80/90, em que, ao se olhar a página, parecia não haver forma alguma. Era preciso mudar o foco do olhar, relaxar a vista, enxergar além, ver de uma forma diferente da que se costumava usar. Era preciso desacostumar o olhar, habituado àquilo que organizáramos previamente como enxergar. E então, quando se abria mão da forma habitual de ver, quando se relaxavam os olhos e os modelos pregressos, surgia uma imagem nítida, viva, presente, que parecia saltar da folha para a realidade.

Assim acontece diante do caos. Por vezes, estamos tão focados na vida que criamos para nós, na história que tínhamos escrito de quem somos, do trabalho que temos, da nossa posição social ou de um relacionamento que, quando sobrevém uma mudança e retira tudo aquilo que tínhamos planejado e a que havíamos nos acostumados como ordem e verdade, ficamos desnorteados. Dependendo da intensidade com a qual havíamos nos apegado à situação ou à imagem de quem achávamos que éramos, surge o desespero. E, como nos livros 3d, o desespero não ajuda em nada. Quem se desespera diante da página, tende a largar o livro, dizendo que não há imagem alguma. Mas há. Há uma imagem que ainda não foi possível ver, porque ainda estamos buscando enxergar, nos cacos do que foi, uma forma de recuperar o desenho quebrado ou de refazê-lo de algum jeito.

Os antigos diziam que o inverno é o tempo do caos. É o período em que nos alimentamos da nossa própria despensa, em que olhamos para tudo aquilo que escolhemos colher na metade solar do ano. Somos chamados a olhar para nossos próprios recursos e aprendizados, para o que acumulamos ou mantivemos guardado. É o tempo em que as noites se tornam mais presentes, levando-nos para o de-dentro, o repensar, o contato com o fim.

Mas o inverno é, também, o momento em que se pode olhar para o fim como abertura para um novo começo. É o espaço em que se pode olhar para os cacos que temos nas mãos como peças e escolher o que criar, o que plantar. É a hora de decidir que primavera queremos ter. De certa forma, a visão do inverno está presente em todo fim de ciclo: no envelhecimento, na tpm, no inferno astral antes dos aniversários, no fim do ano, nas mudanças das fases da vida, no fim de um relacionamento, de um emprego, de uma tentativa. Mas é o inverno que prepara as primaveras.

É preciso abraçar o caos não como algo sem sentido ou ameaçador, mas como a quebra que torna possível a recriação mais viva. É preciso amá-lo e agradecer a ele como um presente que o universo nos dá: uma nova tela para nos recriarmos, agora com novos recursos; de escohermos uma nova florada; de nos livrarmos do que não nos cabe mais. O caos tem a beleza das infinitas possibilidades e as apresenta todas juntas, para que possamos escolher uma nova. Ele ajuda a desengessar a vida, num eterno movimento de criação, destruição e recriação. É parte da dança de Shiva, do eterno bailar do universo. Não é a ausência de ordem, mas a presença de todas as ordens possíveis simultaneamente, diante das quais se faz necessária a escolha, a intenção do caminho e o caminhar.

O caos possibilida que a vida flua, que não nos acomodemos demais ou fiquemos estagnados em apenas uma versão de nós mesmos. Ele nos traz a riqueza de tudo que podemos ser. Como diria Nietzsche, "é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz a uma estrela bailarina." Não era à toa que os celtas comemoravam a deusa da criatividade e da sabedoria no inverno. É na sombra e na noite que estão o potencial criativo, os sonhos e os desejos. É preciso ter dentro de si o caos e trazê-lo para fora, impulso e matéria para a concretização da obra na metade clara do ano. É na sombra que a terra prepara as sementes para que possa florescer a primavera.

O inverno e o caos não existem para que sejam eternos, assim como as ordens que construímos também não existem para serem eternas. Há um movimento constante do universo e da vida. Dia e noite se sucedem, sendo ambos igualmente necessários. Se um nos traz os sonhos, o outro nos possibilita realizá-los. Quando nos apegamos a algo que precisa ir ou que já foi embora, estamos indo contra a vida. É como agarrar o dia, ou tentar impedir o pôr-do-sol.

Da mesma forma, também estamos contra o fluxo do universo quando nos mantemos tempo demais no caos, sem uma intenção e ação de nos recriarmos. Que possamos abraçar todas as estações de nós mesmos: outono, inverno, verão e primavera. E que possamos honrar o tempo de cada coisa, do que se desfaz e do que se recria, porque, como diria Cecília, “a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.”

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