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  • Foto do escritorFlávia Esper

Feminino & Masculino


Junho lilás, junho dos namorados. O mês de junho sempre foi marcado pelo dia dos namorados (e pelas festas juninas, claro). Este ano, porém, o tema dos relacionamentos ganhou outra dimensão. Diante das notícias de estupro cada vez mais terríveis, tem sido imperioso olhar com honestidade para a cultura na qual crescemos, tomarmos consciência de como essa cultura nos afeta e favorece tais crimes, e tomar nas mãos a responsabilidade de transformar essa cultura.

A questão cultural é sempre uma questão estrutural. Quando se trata de feminino e masculino, essa estrutura foi construída através de séculos. Por isso, absolutamente todos nós, em algum nível, já reproduzimos reflexos dessa cultura. Fomos criados nela. E podemos transformá-la.

Nenhuma mudança estrutural é fácil. Também não é feita por isenção. É preciso olharmos funda e sinceramente para nós mesmos e identificarmos onde a visão machista ou da cultura do estupro reverbera em nós. Pode ser num detalhe, como na forma como uma mulher se sente bem quando percebe que a nova namorada do seu ex é feia e pensa que ele saiu perdendo. Ou na forma como alguém xinga uma mulher de piranha ou vagabunda quando recebe uma fechada no trânsito, mas xinga um homem de barbeiro, nas mesmas condições. Pode ser ao rir com piadas que denigrem as mulheres, ao repetir chavões machistas como "mulher no volante, perigo constante." Ou em atitudes bem mais evidentes.

Admitir nossa parte em algo que termina por favorecer crimes é um processo difícil. Até porque nós nunca cometeríamos esses crimes. Então nos assusta pensar que temos alguma responsabilidade em sustentar uma cultura que, em última análise, permite e alimenta a existência desses crimes. Somos orgulhosos, tentamos nos preservar.

Por mais difícil que seja, buscarmos nossa própria responsabilidade em reproduzir essa cultura ou em se anular diante dela é o único caminho para a mudança de padrão e consciência. E é preciso irmos juntos. Se o machismo foi gerado por homens, não importa mais. Não importa mais quem, no passado, iniciou o processo. Não adianta absolutamente nada culpar os homens agora. Adianta trazer luz à consciência desses homens e também de todas as mulheres.

Masculino e feminino estão feridos na cultura atual.

Claro que, na prática, as mulheres sofrem mais. Estão mais conectadas com esse sofrimento e são diariamente relembradas, a cada olhar ou cantada que recebem, por exemplo, ou quando há abusos de qualquer espécie. Isso traz medo, descrença, revolta, raiva, dor. São sentimentos válidos e verdadeiros. Mas, se pensarmos num nível acima, estamos todos feridos e desequilibrados em nossa essência. Precisamos que mulheres se unam, sim. Mas precisamos, também, que homens e mulheres se unam, em vez de se tratarem como rivais.

Este é o tempo da escuta. Os homens têm muito a aprender, se deixarem o orgulho de lado e escutarem, com seus corações, as mulheres. As mulheres têm muito a ensinar, se conseguirem deixar a raiva e a revolta de lado e focarem em ajudar os homens a entender. É difícil, porque há muita dor por parte das mulheres. É difícil, porque há orgulho por parte de muitos homens, porque foram criados para ser os que sabem e podem tudo, a desvalorizar sentimentos, e as ideias e palavras das mulheres. E, se eles não ocuparem essa posição daquele ser que sabe tudo e aguenta tudo e decide tudo, que lugar irão ocupar? Toda reestruturação assusta. Assusta abrir mão do chão que temos, por pior que seja, pois nos dá a segurança de já o conhecermos.

No movimento das eras, tanto o matriarcado antigo quanto os séculos de patriarcado foram necessários. O sofrimento de todas as mulheres trouxe o movimento feminista, trouxe a luta por equidade de direitos e valores. Trouxe, também, por um tempo, a necessidade de uma atitude mais masculina, de ir à guerra, de assumir posições beligerantes. Toda revolução demanda certa dose de agressividade. Os séculos de machismo e de luta em busca de um lugar mais saudável também feriu as mulheres. E então houve um movimento lindo no sentido do resgate do feminino sagrado, da mulher ancestral, do parto, da delicadeza. Um resgate da sororidade, da beleza real, da gratidão e da cura. As mulheres, ao longo do tempo, estão conseguindo se reinventar. Não para serem iguais ou melhores que os homens, mas para serem profunda e intensamente o que são: mulheres.

Só conseguimos romper com o que nos sufoca quando o sofrimento é maior que o medo de romper. As mulheres romperam. Os homens não precisam se ressentir ou se sentir ameaçados. Eles podem ser gratos às mulheres, por estarem abrindo o caminho para uma nova cultura que será melhor para todos. Porque, ao contrário do que parece, não é fácil ser homem em uma cultura machista também. Agora é a hora de os homens se reinventarem.

Não pensem que não estão feridos. O mundo machista também os afastou de si mesmos. Lançou-os na insegurança, em achar que precisam ter dinheiro e posição social, ser rochas inabaláveis, demonstrar sempre decisão e força para serem amados. Fez com que achassem que precisam ser duros, fortes e mesmo violentos. Que precisam ter músculos, xingar na cama, bater na mesa. E não chorar. Chorar é coisa de menina. Dançar também, a menos que seja para "pegar" mais mulheres.

Deve ser difícil. Nós precisamos do masculino de vocês tanto quanto vocês precisam do nosso feminino. Precisamos da essência masculina de proteção, acolhimento, cuidado. Isso nos faz bem. Assim como nosso acolhimento suave, nossa sensibilidade para enxergar pessoas e situações também são necessárias para vocês. Juntos, masculino e feminino podem se curar e se fortalecer.

É necessário que as mulheres se unam para saber, cada vez mais, sobre o que é ser mulher, sobre resgatar a autoestima e a posse de seus próprios corpos. É preciso que os homens também se unam para rever o que é ser homem, para se reinventarem como homens. E para permitir que as mulheres sejam mulheres, sem se sentirem ameaçados.

Escutar as mulheres, que já passaram por um longo processo de reinvenção, pode ajudar bastante. As mulheres compartilharem o processo, também. É preciso que homens e mulheres se aliem, não como rivais, mas como parceiros dispostos a aprender uns com os outros, a se curar mutuamente, a aprender a se relacionar cada vez mais através do amor e não da dor, do medo ou da manipulação.

O que nos cura é o amor, a integração. As acusações cheias de ódio afastam o outro e nos separam do coração. É necessário expurgar o ódio e a revolta de séculos, sim, mas é fundamental dar um passo depois da catarse necessária, além do ódio, na direção do amor. A agressão não nos cura, mesmo quando pode ser justificada. A separação não nos cura, o orgulho e a atitude defensiva só impedem que observemos as críticas que recebemos, pois nos deixam mais preocupados em nos defendermos das "acusações" que em verdadeiramente olhar, admitir e transmutar.

Que a belíssima movimentação de mulheres (e alguns homens) em prol da construção de uma nova cultura, de respeito, delicadeza e cuidado entre os gêneros seja acolhida e abraçada por todos. Que, juntos, homens e mulheres consigam se reinventar e estabelecer as bases de uma nova cultura, a cultura do respeito e do acolhimento.

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